O Direito do Consumidor é uma disciplina sobre a qual se produz uma infinidade de arquétipos. Dentre seus críticos não falta quem reclame do seu conteúdo demasiadamente protetivo, paternalista ou de intervenção excessiva no mercado. No extremo oposto, muito entusiasmo se produz vendo nele o último obstáculo à voracidade do mercado, quase como condenação ao próprio consumo e aos riscos de uma sociedade que se desenvolve em uma velocidade sem precedentes. Em geral, essas posições extremadas revelam mais vontade do que técnica, mais desejo do que realidade. Não por acaso, apropriada é a lembrança do velho brocardo latino, virtus im medium est (a virtude está no meio).
Um registro inicial é expressivo: os países mais desenvolvidos do mundo, em termos econômicos, culturais e sociais, são também os que têm um maior nível de efetividade dos direitos do consumidor. E seja dito, não se trata de algo cultural ou espontâneo, senão resultado da construção de uma consciência comum, porém baseada em legislação que ao longo de décadas definiu e sedimentou direitos que devem ser respeitados pelos fornecedores. Afinal, só há Direito do Consumidor onde existe sociedade de consumo. É seu pressuposto lógico.
É indiscutível, por outro lado, que o Direito do Consumidor compreende, em si, também uma projeção da proteção da pessoa humana. Consumir é uma necessidade existencial, ninguém vive sem consumir. Logo, resguardar a integridade de cada pessoa é fazê-lo também na sua tutela como consumidora. Eis uma dimensão ética da disciplina. Porém, consumir é um ato eminentemente econômico. Consumir é tomar para si e exaurir as potencialidades e o valor da coisa pelo uso. E nesta dimensão econômica é que surge o mercado em uma relação de interdependência necessária: só há mercado por que há consumidor; só há consumidor porque há mercado. E é esta a raiz da provocação da coluna de hoje: afinal, examinando a realidade brasileira, é possível determinar como o Direito do Consumidor contribui para o aperfeiçoamento do mercado? Desde já se antecipa a resposta afirmativa. Os exemplos são abundantes para demonstrar essa contribuição funcional ao mercado, em uma abordagem, digamos, mais pragmática sobre a utilidade do Direito do Consumidor para a sociedade brasileira atual.
O primeiro exemplo é óbvio. O Direito do Consumidor incrementou, como nenhuma outra disciplina jurídica, a transparência nas relações de mercado. A previsão pioneira do princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e seu desenvolvimento jurisprudencial trouxeram consigo o reconhecimento jurídico do dever de informar e esclarecer do fornecedor, a força vinculativa da informação prestada, a repressão ao descumprimento do dever e o controle da veracidade da publicidade, dentre outros aspectos. Dizer-se que o consumidor tem o poder da escolha — ou ainda a célebre fórmula do consumidor como “rei do mercado” — só é dotada de sentido se compreendida a partir de mecanismos que assegurem a efetividade do seu esclarecimento, de modo que tenha as informações necessárias para poder fazer escolhas em seu próprio proveito.
Trata-se de uma contribuição decisiva que o Direito do Consumidor conferiu ao aperfeiçoamento do mercado, reconhecendo a vulnerabilidade técnica do consumidor e sua consequente assimetria informativa em relação ao fornecedor, e definindo, por isso, deveres específicos em relação às informações que devem ser prestadas e o resultado que devem procurar realizar, em proteção à própria utilidade do contrato.
Outra influência decisiva do Direito do Consumidor sobre o mercado de consumo diz respeito à sua interação com a livre concorrência. A livre concorrência é protegida para promover a maior eficiência do mercado, em favor do consumidor. Práticas comerciais abusivas como a venda casada ou a recusa da contratação, ou infrações à ordem econômica como a venda abaixo do preço de custo, lesam o consumidor e prejudicam a existência de concorrência saudável entre vários competidores no mercado. Lembre-se: em toda violação a direito do consumidor se esconde uma ineficiência do fornecedor, que busca compensá-la com a violação da lei. E isso repercute também sobre os demais fornecedores — sobretudo os que atuam conforme a lei, quando isso represente um custo que o infrator não tem.
Outro exemplo dessa interação, bem percebido pela jurisprudência nacional, diz respeito ao uso indevido da marca com o propósito de confundir o consumidor. A construção da marca e sua valorização dependem de recursos e esforços do agente econômico, em geral vinculado a um determinado padrão de qualidade que se agrega aos sinais que a caracterizam. A ofensa à exclusividade de uso da marca, sob as mais variadas estratégias, viola o dever de transparência, e o direito do consumidor à informação, ao buscar confundi-lo em relação à identidade e características do próprio fornecedor, ou de produto ou serviço que oferte.
O interesse do consumidor e a livre concorrência como fatores para elevação da qualidade dos serviços é que orientam, também, o reconhecimento dos novos serviços da economia digital, como é o caso atual dos aplicativos de transporte ou de hospedagem. Sempre vai haver quem sustente a necessidade de restrição de acesso ao mercado em nome de supostos benefícios ao consumidor. Todavia, quando estas supostas vantagens se comparam a benefícios reais, como o aumento da qualidade e a redução de preços, a distância entre os argumentos e a realidade denuncia o sofisma.
A noção de qualidade dos produtos e serviços oferecidos no mercado é um dos conceitos-chaves do Direito do Consumidor. Por qualidade entenda-se tanto a utilidade de produtos e serviços para os fins que legitimamente deles se esperam quanto que ofereçam apenas riscos normais e previsíveis. De novo, nada além daquilo que é razoavelmente esperado, de modo que, na comparação entre benefícios e danos, a balança sempre penda, com toda evidência, para os primeiros. O fomento à qualidade é uma das repercussões mais positivas do Direito do Consumidor sobre o mercado. Não só para impor o dever jurídico correspondente, mas por construir um sistema de responsabilidade no caso da sua violação.
Neste tema, questão atualíssima é a da denominada obsolescência programada[1]. Em termos de fácil entendimento, trata-se de estratégia adotada por certos fornecedores, consistente em reduzir o tempo de vida útil de um determinado produto com o objetivo de estimular nova aquisição de outro produto semelhante. Recentemente, foi noticiado pela imprensa que um casal britânico, pelo fato de estar se mudando para um novo apartamento já mobiliado, estava revendendo eletrodomésticos em perfeitas condições de uso, na sua maioria adquiridos há mais de 50 anos. Dentre eles, uma lavadora de roupas, uma secadora e um ferro de passar. É pouco provável — para dizer o mínimo — que uma notícia dessas se repita em algumas décadas. A durabilidade dos produtos, hoje, é infinitamente menor do que no passado. Obviamente que para isso contribui o uso de novos materiais, que permitiram reduzir custos e tornar muitos produtos mais acessíveis aos consumidores. Todavia, quando isso não se deve a características dos produtos em si, mas de uma estratégia (daí tratar-se, justamente, de obsolescência “programada”), há uma clara violação do dever de transparência pelo fornecedor. Afinal, o que não pode é gerar uma expectativa sobre a durabilidade do produto e frustrá-la. Se quer vender a preço menor porque o produto durará menos, é simples, basta deixar isso claro aos consumidores. Porém, respeitando o dever de assegurar a possibilidade de conserto dos produtos, conforme a lei (artigo 33 do CDC). Outro efeito perverso da obsolescência programada se dá em relação ao meio ambiente, com o aumento exponencial do descarte de resíduos, hoje enfrentada na disciplina da denominada “responsabilidade pós-consumo”, e o compartilhamento de deveres entre fornecedores, consumidores e o poder público.
Por fim, refira-se que o Direito do Consumidor define uma nova distribuição dos riscos da oferta de produtos e serviços no mercado. Esta distribuição de riscos leva em conta as próprias características da atividade econômica, de modo que, ao definir que o fornecedor deve responder, independente de culpa, por defeitos e vícios de produtos e serviços, não é porque define que deva ele suportar todos os custos. Ao contrário, é porque só o fornecedor, ao fixar o preço de produtos e serviços, quem pode distribuir o custo desses riscos a todos. Trata-se do chamado risco-proveito, com sólida justificação lógica. Não é por outra razão que só será sustentável economicamente a oferta ao mercado de produtos e serviços com riscos normais e previsíveis. Afinal, sobre estes há como prevenir ou mitigar seus efeitos, bem como incorporar os custos dos danos que decorram de uma economia de escala, e distribuí-los pelo sistema de preços. A eficiência no controle desses riscos e no seu custo promove a eficiência do mercado, maior qualidade de produtos e serviços e ganhos efetivos para consumidores (menor lesividade) e fornecedores (maior lucro). Nessa equação, reduzir custos em detrimento da segurança dos consumidores, além de razões ético-jurídicas e normativas de proteção à pessoa do consumidor, torna-se também uma decisão ineficiente em termos econômicos.
Não há livre mercado eficiente sem o respeito aos direitos do consumidor. É uma exigência civilizatória. E os exemplos sobram no mundo. No Brasil, contudo, o capitalismo de compadrio, a perseguição de favores ou da leniência do Estado e a contradição fundamental entre a condenação pública e o proveito, em privado, dos múltiplos vícios e “jeitinhos” — ora desnudados em capítulos sem fim da crônica política, empresarial e policial —, mostram que ainda há muito a ser feito. O que não pode — diante de violações repetidas e cotidianas dos direitos do consumidor — é querer afirmar que no número de reclamações e ações judiciais de consumidores lesados está a causa de problemas do mercado, e de como é difícil empreender no Brasil.
[1] Bruno Miragem, Curso de Direito do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: RT, 2018, p. 121-122.