Nas últimas semanas ganhou destaque discussão sobre a discriminação de preços entre homens e mulheres para acesso a estabelecimentos de lazer e entretenimento. Trata-se da prática comum em casas noturnas e similares de cobrarem um valor de ingresso menor para mulheres em relação aos homens. A questão suscitou várias reações, as quais, naturalmente, não se confinaram ao Direito do Consumidor, senão à própria razão de ser da diferenciação, uma vez percebida a estratégia de utilização das mulheres — que em tese acorreriam em maior número motivadas por preços mais baixos — como mecanismo de atração de uma quantidade maior de homens. Esta, contudo, não é a única estratégia do gênero. No Brasil e em outros países, não são incomuns os eventos designados genericamente ladies first, nos quais é franqueado o acesso inicial exclusivamente a mulheres (e por vezes, inclusive, com a oferta abundante de bebidas alcoólicas), para em seguida admitir-se o ingresso de homens no mesmo recinto. Não por acaso, se levantam, nestes casos, argumentos sobre o desrespeito à condição feminina ou à dignidade da mulher.
Do ponto de vista normativo, há abundante conjunto de normas que proíbem a discriminação. No Direito brasileiro, a proibição à discriminação (artigo 3º, IV), e a igualdade entre homens e mulheres “em direitos e obrigações” é óbvia e solenemente afirmada na Constituição da República (artigo 5º, II). O Código de Defesa do Consumidor, de sua vez, assegura como princípio a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (artigo 4º, II). No direito comunitário europeu, diretiva específica sobre o tema observa que a diferenciação só será admitida “se o fornecimento de bens e a prestação de serviços exclusivamente ou prioritariamente aos membros de um dos sexos for justificado por um objetivo legítimo e os meios para atingir esse objetivo forem adequados e necessários” (artigo 4º, item 5, da Diretiva 2004/113/CE).
A questão específica da diferenciação de preços entre homens e mulheres, todavia, abre espaço para uma discussão mais ampla, e de grande interesse no direito do consumidor, que é, justamente, o que se deve considerar como discriminação ilícita e, portanto, prática vedada aos fornecedores no mercado de consumo. Um dos estudiosos do tema, no Direito brasileiro, coincidentemente, é o atual Secretário Nacional do Consumidor, Artur Rollo,[1] que há alguns dias lançou nota técnica daquele órgão considerando abusiva a diferenciação de preços entre homens e mulheres, nas circunstâncias indicadas.[2] A questão, todavia, torna-se mais complexa quando abordadas outras situações bastante presentes no mercado de consumo brasileiro.
Discriminação é expressão resulta de discrimen, de origem latina, indicando o que separa, separação, diferença. Discriminar é diferenciar, pressupõe escolhas. E fazer escolhas é algo inerente à liberdade humana: separam-se do conjunto das pessoas um grupo de amigos, ou entre produtos, os de melhor qualidade daqueles que não tenham as mesmas características, em toda sorte de preferências. Toda escolha separa, elegem-se alguns em detrimento de outros. Porém, o que transforma uma escolha, ato de liberdade, em um discriminação ilícita — daí, portanto, objeto de repressão pelo Direito?
Quando alguém é impedido de tomar o transporte público porque está em péssimas condições de higiene, há aí discriminação? O artigo 729 do Código Civil admite a recusa: “O transportador não pode recusar passageiros, salvo os casos previstos nos regulamentos, ou se as condições de higiene ou de saúde do interessado o justificarem.”
Alguns anos atrás o tema envolveu a tentativa de restrição do acesso a shopping centers por grupos de adolescentes pobres ou de classe média baixa, para encontros agendados pelas redes sociais (o que se denominou, à época, “rolezinho”). A pergunta era se seria lícito aos administradores dos shopping centers impedirem o acesso destes grupos sob a alegação de razões de segurança ou bem estar dos demais clientes.[3]
Nas relações econômicas de mercado há inúmeras questões que suscitam reflexões apuradas no ponto. Constitui-se infração à ordem econômica, segundo a Lei de Defesa da Concorrência, “discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços” (artigo 36, X, da Lei 12.529/2011). Ninguém terá dúvida, contudo, que se um empresário for procurado por alguém que lhe compre dez mil itens de um determinado produto, será lícito que defina preço unitário menor do que o que cobrará de quem adquira apenas um ou dois itens.
Da mesma forma, ganha relevo hoje a discussão sobre a discriminação no acesso ao crédito. A negativa da concessão de crédito pode ser considerada uma discriminação ilícita? Se a situação concreta envolva alguém que pretende obter um financiamento bancário para aquisição de imóvel para moradia no preço de alguns milhões de reais, porém comprove renda líquida mensal na ordem de um ou dos salários mínimos, será intuitiva a decisão do banco de negar o crédito. Se por outro lado, a negativa de crédito se der com fundamento em critérios pouco claros, ou ainda, não associados à finalidade ou utilidade do negócio, a negativa será questionada. Foi o que ocorreu, neste particular, quando se discutiu a legalidade ou não dos sistemas de pontuação de crédito (crediscore), resultando decisão que o admite, desde que haja clareza nos critérios de atribuição dos pontos.[4]
A discriminação ilícita também é objeto de necessária atenção no domínio dos seguros privados. Ora, a matéria prima dos seguros é a correta avaliação dos riscos, sua estimação econômica e diluição entre uma massa de segurados, sob a administração e expertise do segurador. Conceitualmente, o prêmio a ser pago pelo segurado ao segurador, para a garantia de determinados riscos, será calculado conforme as características do risco, para tanto se servindo da ciência atuarial na análise de série de informações disponíveis sobre ele. Admite-se, em termos técnicos, a seleção do risco.
Contudo, não é desconhecida a dificuldade de precisar-se, em relação à atividade securitária, o que se deva considerar seleção de riscos, e o que passe a ser considerado discriminação ilícita. É o que se debate, ademais, em relação à diferenciação quanto ao sexo do segurado.[5] No direito europeu, a mesma Diretiva 2004/113/CE, antes mencionada, admite a diferenciação “sempre que a consideração do sexo seja um factor determinante na avaliação de risco com base em dados actuariais e estatísticos relevantes e rigorosos.” Porém, proíbe que “custos relacionados com a gravidez e a maternidade” sejam admitidos para diferenciar a prestação de homens e mulheres (artigo 5º). Todavia, o risco de práticas discriminatórias existe. Daí, inclusive, a preocupação presente em projeto de lei especial sobre o contrato de seguro, em tramitação no Congresso Nacional, para expressamente proibir, no tocante aos critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos, “políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial” [6]
A questão tem grande alcance também em relação aos idosos, na contratação dos planos de saúde. O Estatuto do Idoso veda expressamente a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade (artigo 15, §3º). A norma que o faz, todavia, tem sua constitucionalidade discutida em relação aos contratos celebrados antes de sua vigência[7]. Boa questão dirá respeito ao que se considerará discriminação no caso. Em especial, na comparação entre o aumento de custos decorrentes da maior utilização dos serviços de saúde pelos idosos e a cobrança de preços diferenciados, ou sua diluição aos demais consumidores. O propósito da norma, contudo, é impedir a exclusão dos idosos da contratação, quando mais precisam.
Percebe-se, portanto, as dificuldades do sensível tema da discriminação ilícita no direito do consumidor. As premissas do debate, contudo, são conhecidas. De um lado a oferta de produtos e serviços pelos fornecedores no mercado de consumo, lhes impõe um dever de cumprimento, nos exatos termos de seu conteúdo. Regras do CDC como as que proíbem a recusa de atendimento às demandas dos consumidores (artigo 39, II) ou recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento (artigo 39, IX), conduzem à ideia de uma obrigação de contratar que lhe retira qualquer discricionariedade para a escolha de quais consumidores serão atendidos. A recusa da contratação, assim, para que não se caracterize como discriminação ilícita, deverá ser suportada por critério lógico e juridicamente admitido para diferenciação (exemplo: não se concede crédito àquele que não oferece garantias), a ser reproduzido sem distinção a todos os consumidores que se encontrem na mesma condição. Falar-se, por outro lado, em critério que seja “juridicamente admitido”, naturalmente excluirá a possibilidade que se utilize como critério de diferenciação, alguma distinção que ofenda direitos fundamentais do consumidor.
O aspecto mais difícil em relação à vedação da discriminação ilícita, contudo, se dá, nos dias de hoje, em relação à política de formação de preços pelos fornecedores, em situações nas quais certas condições subjetivas dos consumidores sejam avaliáveis para definir diferenciações. Neste caso, será o escrutínio dos critérios técnicos que fundamentem a formação do preço o instrumento decisivo para identifica a regularidade ou não da atuação do fornecedor.
Como se vê, a identificação precisa das situações que caracterizem a discriminação ilícita dos consumidores nem sempre é fácil. Porém, bem demonstra a natureza essencial do consumo e do acesso a bens na sociedade contemporânea. Evidencia-se aí a amplitude das relações entre a proteção dos direitos dos consumidores e a realização de múltiplos direitos fundamentais assegurados pela Constituição.
[1] Artur Rollo, Responsabilidade civil e práticas abusivas nas relações de consumo. São Paulo: Atlas, 2011, p. 147 e ss.
[2] http://www.justica.gov.br/noticias/diferenciacao-de-precos-em-funcao-de-genero-e-ilegal/nota-tecnica-2-2017.pdf
[3] O tema do “rolezinho” à luz do direito de acesso do consumidor a bens e vedação da discriminação é objeto de estudos vários, com especial destaque aos exames críticos dos Professores Marcos Jorge Catalan e Pablo Malheiros da Cunha Frota, alguns acessíveis pela internet.
[4] STJ, Recurso Especial 1.419.697/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª Seção, j. 12/11/2014, DJe 17/11/2014.
[5] Veja-se, a respeito, o estudo do Professor Thiago Villela Junqueira, Notas sobre a discriminação em virtude do sexo e o contrato de seguro, publicado em obra coletiva: Bruno Miragem/Angélica Carlini (Orgs.) Direito dos seguros. São Paulo: RT, 2014, p. 291 e ss.
[6] Artigo 52, §5º do Projeto de Lei L 3555-C/2004, segundo texto final aprovado pela Câmara dos Deputados, ora em tramitação no Senado Federal.
[7] RE 630852/RS, Rel. Min. Rosa Weber, com repercussão geral reconhecida e pendente de julgamento.