Reforma da lei dos planos de saúde não pode vulnerar consumidor

Tema sensível aos brasileiros, a alteração da legislação que disciplina os planos privados de assistência à saúde vem ocorrendo com relativa celeridade no Congresso Nacional, e até onde se sabe, sem a participação efetiva dos órgãos e entidades representativos dos interesses dos consumidores.[1] A crítica tem sua razão de ser. Nas sete audiências públicas realizadas pela Comissão Especial que trata do tema na Câmara dos Deputados, dentre as 19 pessoas ouvidas, apenas uma era representante de entidades de defesa dos consumidores, frente a 13 representantes de fornecedores.[2]

Só esse dado é expressivo da defesa insuficiente dos interesses do consumidor no plano político-institucional, o que se reflete no plano legislativo. Tratando-se especialmente da saúde suplementar, outro episódio característico, ocorrido em 2014, é volta e meia objeto de recordação. Trata-se da inclusão, no Congresso Nacional, em medida provisória que versava sobre direito tributário (regras sobre a tributação sobre o lucro das empresas), de artigo que anistiava multas das operadoras de planos de saúde, da ordem de R$ 2 bilhões de reais. A pressão social à época fez com que o próprio parlamentar responsável pela introdução do “jabuti” em questão, o conhecido deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), voltasse atrás, e defendesse o veto ao artigo — o que terminou sendo feito pela Presidente da República.[3] Boa doutrina de direito do consumidor faz referência à existência de uma vulnerabilidade político-legislativa do consumidor.[4] Parece que é disso que se trata.

A iniciativa de aperfeiçoamento legislativo não deve ser, em si, combatida. O trabalho da Comissão Especial da Câmara dos Deputados se debruça sobre mais de 140 projetos de lei em tramitação no Parlamento. Não é de hoje que os planos de saúde são objeto de discussões envolvendo, de um lado, a frustração de interesses dos consumidores que os contratam; de outro, a insatisfação das operadoras (fornecedoras do serviço), em relação aos custos elevados da medicina e tudo o que se relacione com a saúde, bem como a perda de consumidores dos planos coletivos em razão do aumento do desemprego — e falta de condições dos consumidores demitidos de custearem sozinhos com as mensalidades antes repartidas com o empregador. Acrescente-se a isso uma regulação imperfeita, na qual a Agência Nacional de Saúde tem uma atuação burocrática e passiva, frente aos desafios cada vez maiores que se colocam ao setor, e a pressão sobre seus custos, vindos, sobretudo, de setores que ficam ao largo da regulação e supervisão da entidade, como hospitais, medicamentos e honorários médicos.

Todavia, da soma de todos os reclamos, é indisfarçável que o sujeito mais vulnerável entre todos os atores da saúde suplementar é o consumidor. É sabido que a lei vigente sobre os planos de saúde (a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998) em que pesem todas as críticas e sugestões de aperfeiçoamento, não é a responsável pelas dificuldades do relacionamento entre consumidores e operadoras de planos de saúde. Ao exigir uma cobertura básica obrigatória para estes planos (plano-referência, artigo 12 da lei), teve o propósito de assegurar que o interesse do consumidor não fosse afetado por série de exclusões ou limitações que sacrificassem a própria razão de ser de um contrato desta natureza, que é a cobertura dos riscos ordinários à saúde e os elevados custos que representam.

Atualmente, porém, mesmo esta cobertura mínima obrigatória vem sendo objeto de críticas. Contrapõe-se a ela a oportunidade de um plano de saúde popular, economicamente mais acessível ao consumidor, e que ofereça um conjunto menor de especialidades e serviços, àqueles que não possam pagar pela “cobertura completa”  hoje prevista na lei. Trata-se de uma antiga ideia defendida por empreendedores do setor de saúde, e que conta com o apoio entusiasmado do atual ministro da Saúde Ricardo Barros.[5] Em sua defesa, menciona-se, ainda, um alegado alívio sobre o Sistema Único de Saúde, sob o argumento de que cidadãos que passassem a poder contratar estes novos planos de saúde standard, e usufruir de seus serviços, deixariam de representar um custo para o sistema público.

O argumento é atraente, porém um olhar mais atento não deixa de perceber alguns obstáculos. Primeiramente, que de modo indistinto a todos os estratos sociais que contratam planos de saúde, o grande risco identificado como motivação para a contratação diz respeito a custos hospitalares. Estes, como se sabe, são elevadíssimos e, virtualmente, incontroláveis para alguém que venha a ter a necessidade de serviços desta natureza. Por outro lado, a contratação de planos de saúde privados não significa, necessariamente, uma renúncia ao sistema público de saúde.

Ademais porque, em inúmeras situações, a utilização do serviço público não decorre da escolha do consumidor, mas de contingências da necessidade de acesso ao serviço (como ocorre em atendimentos de urgência ou no caso de internação em localidades que não possuem hospitais particulares credenciados pela operadora do plano). Trata-se de tema objeto de aceso debate sobre a existência ou não de um dever de ressarcimento, pelas operadoras, dos custos em relação a seus consumidores, realizados por hospitais integrantes do sistema público de saúde.[6] A Lei dos Planos de Saúde exige este ressarcimento (artigo 32), mas encontra resistência das operadoras, que questionam sua constitucionalidade, frente à liberdade de escolha do cidadão, de exercício do seu direito de acesso universal ao serviço público de saúde (artigo 196 da Constituição da República).

Da mesma forma, é reconhecido, quase à unanimidade, que uma das grandes fontes de litígios entre consumidores e fornecedores no tema dos planos de saúde, diz respeito ao solene descumprimento de deveres básicos de informação no período que antecede ao contrato. Em termos mais claros, a oferta dos planos de saúde é feita, muitas vezes, sem maiores esclarecimentos sobre coberturas a que fará jus o consumidor, bem como a suas limitações. A pressão para a venda, em modelos de negócio nos quais a remuneração dos intermediários se mede pelos resultados de contratos efetivamente celebrados, tradicionalmente desestimulam o oferecimento de informações completas ao consumidor, em especial se a exata compreensão do contrato possa levar à decisão de não contratar. O mais comum, portanto, é que os que se dediquem a oferecer e encaminhar a contratação deixem de prestar informações que desencorajem a decisão de contratar, violando o direito do consumidor à informação e esclarecimento.

Da divergência entre a expectativa legítima que resulta da promessa feita e da informação deficiente, e a posterior recusa no cumprimento, surge boa parte dos litígios no setor. Na oferta de planos de saúde populares, cuja vocação natural dirige-se a pessoas de menor renda e condição social, a tendência de agravamento deste déficit informacional estrutural na relação entre o consumidor, o intermediário que contrata em nome da operadora, e ela própria, que deverá cumprir o contrato, parece elementar.

Porém, as principais questões que envolvem litígios entre consumidores e operadoras de planos de saúde são bastante conhecidas, já de algum tempo. Dizem respeito a recusas de coberturas de procedimentos, ao descredenciamento de profissionais e estabelecimentos de saúde originalmente previstos (e que muitas vezes contribuíram com a decisão de contratação do plano ou da operadora), e à diferença de regras entre planos de saúde coletivos e individuais no tocante ao reajuste das mensalidades e à possibilidade de resilição unilateral do contrato.

No caso da negativa de cobertura, as principais questões envolvem a demora na autorização de procedimentos, a exigência de percentuais elevados de coparticipação  do consumidor e a exclusão de cobertura de procedimentos cujo avanço da ciência e da técnica fazem integrar a expectativa legítima do consumidor (como é o caso dos transplantes de órgãos). Em relação ao descredenciamento de profissionais e estabelecimentos de saúde, nota-se que o próprio interesse do consumidor na contratação orienta-se por certo plano ou operadora, em vista, muitas vezes, dos profissionais e hospitais ofertados. Sua alteração, ao longo da contratação, embora admitida, não pode frustrar os interesses legítimos em relação à certa expectativa de qualidade, ou ainda, causar prejuízo ou descontinuidade aos tratamentos e procedimentos de saúde em curso, a que se submeta o consumidor.

Quanto ao terceiro ponto, da ausência de isonomia em relação aos planos de saúde individuais e coletivos, sua face mais visível é a quase prevalência absoluta da oferta de planos coletivos no mercado, considerando a liberdade de reajuste, independentemente de autorização da ANS; e da mesma forma,a possibilidade de resilição unilateral do contrato por parte da operadora. Esta prevalência dos contratos coletivos, contudo, não elimina situações em que o poder de barganha de pequenas e médias empresas não rivaliza com o das operadoras para promover seu interesse. Ou ainda, as dificuldades de transição de modelo e distribuição de custos em face do envelhecimento da massa de beneficiários.

As operadoras de planos de saúde, cujos argumentos são sustentados com invejável expertise por suas entidades representativas, e profissionais a elas vinculados, também colocam sobre a mesa aspectos que merecem atenção. O primeiro deles diz respeito à pressão promovida por laboratórios ou fabricantes de equipamentos de saúde para aceitação de seus produtos sem o cumprimento dos protocolos de validação científica junto aos órgãos governamentais competentes, ou a comprovação de seu efetivo benefício para a saúde do paciente, em especial por intermédio do estímulo à proposição de ações junto ao Poder Judiciário. Por outro lado, a ideia de que a cobertura oferecida seja custeada por recursos originários das mensalidades, assim como o legítimo ganho decorrente desta atividade empresarial, exige a previsibilidade sobre quais os custos que a integram. Daí que a ausência de supervisão governamental sobre certos custos representativos — em especial os relativos a despesas hospitalares — podem prejudicar esta equação.

De tudo se vê que a adequada disciplina legal dos contratos de planos de saúde é tema de grande importância na sociedade brasileira atual. Por isso mesmo, deve ser objeto de ampla participação de todos os setores envolvidos. O Código de Defesa do Consumidor, e as regras gerais sobre relações de consumo que estabelece, de ordem pública, terão sempre sua aplicação cogente, em comum com as que decorram de lei especial do contrato. Dizer o contrário[7] pressupõe violar a Constituição (artigo 5º, XXXII), o que não se espera do legislador ou de quem caiba dizer o Direito.


[1] https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/2017/08/17/174641-senacon-notifica-camara-sobre-baixa-participacao-de-consumidores-em-mudanca-da-lei-de-planos-de-saude
[2] As audiências públicas se deram no prazo de pouco mais de dois meses, entre  6 de junho de 2017 e 23 de agosto de 2017. Além do representante do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), e dos treze representantes de fornecedores, somaram-se, um do Conselho Nacional de Saúde, um da Associação Médica Brasileira, um do Conselho Federal de Medicina, e dois professores universitários.
[3] https://oglobo.globo.com/economia/senado-aprova-mp-com-anistia-de-multas-planos-de-saude-12206538
[4] Paulo Valério Dal Pai Moraes. Código de defesa do consumidor: o princípio da vulnerabilidade : no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais : interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
[5] http://epoca.globo.com/saude/noticia/2017/05/o-governo-deve-autorizar-criacao-de-planos-de-saude-basicos.html
[6] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mercadoaberto/2017/05/1879749-operadoras-de-planos-de-saude-devem-r-2-bilhoes-ao-sus.shtml
[7] Em matéria do jornal O Globo, de22 de agosto de 2017, constou na manchete que o relator da Comissão Especial na Câmara dos Deputados sobre a reforma da lei dos planos de saúde admitia a possibilidade de o CDC não ser aplicado aos planos de saúde. A partir da matéria, houve dúvida sobre a posição do Deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) sobre o tema, o que, todavia, deverá ser esclarecido com a apresentação do relatório final da comissão. Para a matéria, veja-se: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/relator-admite-possibilidade-de-cdc-nao-ser-aplicado-aos-planos-de-saude-21734273

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