Fato do príncipe, responsabilidade civil e pandemia

A pandemia do coronavírus deflagrou uma série de reflexões sobre seus efeitos em diferentes áreas do direito, com especial atenção, no direito privado, à impossibilidade temporária ou definitiva de cumprimento sem culpa do devedor. Neste cenário, se evidencia a invocação do artigo 393 do Código Civil, eximindo o devedor de responsabilidade pelo inadimplemento em razão de caso fortuito ou de força maior, ainda que não sem a preocupação de demonstrar a relação de causalidade entre o advento da pandemia e a impossibilidade de cumprimento.

O exame mais atento das situações decorrentes do reconhecimento da pandemia, todavia, identifica que as causas de impossibilidade de cumprimento pelo devedor, no mais das vezes, não se atribuem ao fato da pandemia em si, mas às medidas de polícia administrativa adotadas pelo Estado para seu enfrentamento. Estas incluem, dentre outras, a restrição de atividades econômicas e sociais, visando reduzir a circulação de pessoas – o que, reconhecidamente, é um fator de risco para o agravamento do contágio pelo vírus e consequente pressão à capacidade de atendimento do sistema de saúde. Tais restrições vem tomando a forma de decretos editados no âmbito de Estados e Municípios, proibindo ou limitando o funcionamento de estabelecimentos empresariais, a prestação de serviços, as atividades associativas, dentre outras medidas. Deste modo, será o exercício do poder de polícia pela Administração a causa direta da impossibilidade de cumprimento dos contratos, não a pandemia em si. Tais circunstâncias renovam o interesse no exame da noção de fato do príncipe como fundamento para o afastamento da responsabilidade do devedor pelo inadimplemento, quando for ele sua causa.

fato do príncipe é noção de larga tradição, especialmente no direito francês, onde já estava presente no direito costumeiro como causa que afastava a responsabilidade do devedor pelo inadimplemento em contratos como a locatio conductio de matriz romana, espécie unitária abrangente da locação e prestação de serviços1. Em seguida, será conceito incorporado ao direito administrativo, especialmente na disciplina dos contratos administrativos, e das hipóteses que autorizam sua modificação ou resolução, no âmbito dos poderes exorbitantes da Administração2.

A recepção da teoria do fato do príncipe pelo direito administrativo brasileiro não ignorou o espectro mais amplo de aplicação da teoria, tanto como causa da perturbação das prestações originais dos contratos administrativos, quanto da própria responsabilidade da Administração por atos lícitos. Daí, inclusive, a distinção proposta pela doutrina nacional entre os fatos da administração com incidência direta e específica sobre o contrato administrativo, e o fato do príncipe propriamente dito, que é ato geral que pode repercutir, ainda que indiretamente, sobre ele – caso da proibição ou restrição de atividades econômicas3. É previsto pela legislação brasileira sobre contratos administrativos (art. 65, II, “d”, da lei 8.666/1993), e fundamenta a regra do art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, que imputa o dever de indenizar á autoridade cujo ato impor paralisação temporária ou definitiva do trabalho, impossibilitando a continuação da atividade4.

No âmbito da responsabilidade civil, há força maior quando certo dano é causado por ordem de autoridade legítima, o que é fato que justifica o dano5. Eis o fato do príncipe, que no âmbito dos negócios jurídicos privados, ao tornar impossível ou perturbar o adimplemento obrigacional, justifica a não-responsabilização do devedor6. Algumas questões, contudo, merecem atenção em relação à aplicação da teoria do fato do príncipe nos negócios jurídicos privados: (a) quais os pressupostos do ato do Estado e sua relação com a impossibilidade de adimplemento pelo devedor? (b) há situações em que, havendo fato do príncipe que torne impossível ou prejudique o adimplemento, responde o Estado pelos danos causados ao credor?

Pressupostos do ato estatal que se caracterize como fato do príncipe.

O fato do príncipe se caracteriza como ato estatal, característico de uma decisão de autoridade, que repercute em uma relação jurídica existente dando causa a um dano ou prejudicando o curso normal de seus efeitos. É discutível se o ato estatal deve ou não ser dotado de legitimidade, ou se mesmo o ato ilegítimo pode revestir-se desta qualidade. Isso porque, presumida a legitimidade dos atos da Administração, desde logo produzem efeitos na realidade da vida. Tais efeitos serão rescindidos na hipótese de posterior invalidação do ato, como ocorre, por exemplo, naqueles praticados em abuso ou desvio de poder. O mesmo se diga em relação a atos normativos cuja inconstitucionalidade seja posteriormente declarada. Imagine-se, por exemplo, a violação à garantia fundamental de irretroatividade da lei (art. 5º, XXXVI, da Constituição: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). Desde quando editados os atos, produzem efeitos até que sejam impugnados, e serão justamente tais efeitos que caracterizam a intervenção na relação jurídica preexistente, havida entre particulares ou com o próprio Estado. A impossibilidade de cumprir pode se dar, na realidade da vida, em decorrência de um ato ilegal, ou de uma lei inconstitucional, o que, sem prejuízo de eventual responsabilização posterior da autoridade do qual emana, poderá justificar desde logo o inadimplemento sem culpa do devedor.

Outro aspecto que se discute em relação ao fato do príncipe é sua proximidade conceitual em relação à teoria da imprevisão. Será exigível que o fato do príncipe imprevisível ao devedor, de modo que surpreendido por ele, não possa resistir ou evitar? Trata-se de aproximação que se fez, sobretudo, pela aplicação da teoria em relação aos contratos administrativos, nos quais o fundamento para revisão ou modificação das cláusulas contratuais, para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, associa “fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis” ou ainda “álea econômica extraordinária e extracontratual” (art. 65, II, “d”, da lei 8.666/1993). Embora tenha merecido algum apoio na jurisprudência7, é de rigor notar, considerando que o fato do príncipe se compreende no conceito da força maior8, que a imprevisibilidade não constitui seu elemento característico. Na mesma linha dos elementos característicos previstos no parágrafo único do art. 393 do Código Civil, também o fato do príncipe se traduz em fato necessário, cujos efeitos não são possíveis evitar ou impedir. O que o caracteriza, portanto, é a inevitabilidade, que resulta não da previsibilidade ou não9, mas do fato de emanar do Estado, dotado de cogência (ius imperii), e portanto irresistível aos particulares.

Por fim, anote-se que a inevitabilidade se justapõe à própria delimitação do nexo de causalidade. Será fato do príncipe o ato do Estado inevitável, definido como a causa determinante para o dano, ou para o inadimplemento do contrato. Não basta que apenas torne mais grave a posição do devedor, ou mais custosa a prestação dentro do que seja álea ordinária do negócio jurídico celebrado entre os particulares. Contida na noção de força maior, será apenas o fato que impede (torna impossível) o cumprimento, admitindo-se cogitar, sob certas circunstâncias, a responsabilidade do órgão que expediu o ato de autoridade10.

Pandemia, fato do príncipe e responsabilidade do Estado

Sendo o fato do príncipe causa do inadimplemento do negócio jurídico, causando dano ao credor, exonera-se da responsabilidade o devedor. Contudo, sendo o ato estatal a causa do dano, em que condições passa a responder o Estado frente ao credor prejudicado?

Tratando-se o ato estatal decorrente do exercício regular de competência legislativa ou regulamentar do Estado, não se cogita de responsabilização, uma vez que atua como conformador do próprio Direito. Todavia, havendo o exercício de poder normativo ou de atos executivos contra a lei, ou do poder de legislar contra a Constituição, há de se reconhecer a responsabilidade do Estado pelos danos que daí decorrerem diretamente11.

O ato do Estado, contudo, deve respeitar a proporcionalidade, que “proíbe a adoção, para um fim concreto, de uma medida idônea e necessária, mas cujos numerosos prejuízos não serão proporcionais ao êxito procurado e alcançável”12. A licitude e legitimidade da ação estatal resulta da realização do interesse público que a legitima, em detrimento imediato do patrimônio do particular, que por isso fará jus à reparação. Trata-se da responsabilidade pelo sacrifício, assim entendido o dano produzido pelo Estado no exercício de seus poderes legalmente delimitados, e que movido pelo interesse público impõe uma diminuição do patrimônio do lesado13.

No caso das medidas de polícia adotadas para combate à pandemia, os atos do Estado expressam resultam de seu dever constitucional e legal de impedir ato danoso à coletividade, mediante exercício de competências constitucionais relativas à saúde (arts. 23, II e 196 da Constituição), em situação regularmente reconhecida como emergência de saúde pública. Esta situação autoriza a adoção das respectivas medidas restritivas na proteção da coletividade (art. 1º da lei 13.979/2020), que poderão revestir-se de fato do príncipe para excluir a responsabilidade do devedor nas obrigações cuja possibilidade de adimplemento seja atingida por eles. Mais uma vez recorrendo ao direito administrativo, recorde-se a justificação ordinária da atuação exorbitante do Estado fundada na teoria das circunstâncias excepcionais, desenvolvida no princípio do século passado para enfrentamento das situações decorrentes da I Guerra Mundial14.

Registre-se que os esforços de contenção e retardamento dos efeitos da pandemia no Brasil – a exemplo de outros países – vem sendo adotados, dentre outras razões, pela incapacidade do sistema de saúde para atendimento simultâneo a um número elevado de casos, em especial, no caso de manifestações agudas da doença. Deste modo, conforme já tivemos oportunidade de mencionar15, não responde, o Estado, pelos danos causados por estas medidas excepcionais, a não ser quando demonstrado que em sua aplicação, houve, desvio de finalidade ou excesso de poder, ou mesmo quando se verifiquem desproporcionais em situações concretas, em vista da finalidade a ser atendida.

*Bruno Miragem é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); advogado e parecerista.

__________

1 François Bourjon, Le droit comum de la France et la coutume de Paris, reduit em principes, t. I. Paris: 1747, p. 298; Petri Pacioni, Tratactus de locatione et condutione, Florença, 1840, p. 513-514.

2 Da extensa bibliografia, registre-se a tese doutoral que se tornou referência obrigatória no tema, do jurista egípcio Saroit Badoui, Le fait du Prince dans les contrats administratifs en Droit Français et en Droit Égyptien. Paris: LGDJ, 1955, p. 46 e ss. A adoção da teoria, contudo, não é isenta de críticas sobre a incerteza quanto a seus elementos definidores e seu campo de aplicação, conforme menciona, referindo-se à jurisprudência sobre o tema, dentre outros, René Chapus, Droit administratif general, t. I. 15 ed. Paris: Montchrestien. 2001, p. 1211.Questionando a capacidade da teoria do fato do príncipe e da teoria da imprevisão responder aos problemas a que se propõe no contrato administrativo, Charles Eisenmann, Cours de droit administratif, t. I. Paris: LGDJ, 2014, p. 334-335.

3 Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro. 17 ed. São Paulo: Malheiros, p. 22.

4 Mozart Victor Russomano, Força maior e factum principis. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 7. Região, v. 1, n. 1, Fortaleza, jan./jun. 1976, p. 15-21.

5 René Savatier, Traité de la responsabilité civile em droit français, t. I. 2. ed. Paris: LGDJ, 1951, p. 230.

6 Assim o caso em que impede a entrega de mercadorias objeto de apreensão judicial: STF, RE 22991, Rel. Min. Ribeiro da Costa, 1ª Turma j. 22/06/1953, DJ 31/12/1953; igualmente a indenização peo fundo de comércio do locatário em contrato de locação comercial resolvida em razão da desapropriação do bem locado: STF, RE 20293, Rel. Orozimbo Nonato, 2ª Turma, j. 07/04/1953, DJ 19/08/1954.

7 STJ, REsp n. 614.048/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 15/3/2005, DJ 2/5/2005; REsp n. 834.047/RS, Rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma, j. 16/12/2008, DJe 6/2/2009.

8 Bruno Miragem, Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 244 e ss.

9 STJ, REsp 42.882/SP, Rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, j. 21/03/1995, DJ 08/05/1995.

10 STJ, REsp 1280218/MG, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 21/06/2016, DJe 12/08/2016.

11 STF, RE 422.941, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, j. 06/12/2005, DJ 24/03/2006; no mesmo sentido: STF, RE 571.969, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 12/03/2014.

12 José Joaquim Gomes Canotilho, O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos, cit., p. 333.

13 Bruno Miragem, Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, cit.

14 Veja-se Katia Weidenfeld, Histoire du droit administratif: du XIV siècle à nos jours. Paris: Economica, 2010, p. 95-96.

15 Bruno Miragem, Nota relativa à pandemia de coronavírus e sua repercussão sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, v. 1015. São Paulo: RT, maio/2020.

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