A internet das coisas e os riscos do admirável mundo novo

Um dos grandes debates do Direito Contratual, no final do século passado, foi a chamada “desumanização” ou automatização dos contratos[1]. Em síntese, discutia-se a possibilidade de haver a celebração válida de um contrato tendo, em ao menos um dos polos, uma máquina como meio interposto para emissão da vontade. Remetia a situações nas quais a decisão de contratar se impunha a comandos automatizados como apertar o botão ou a alavanca de um equipamento não humano, e com o desenvolvimento da informática, a partir dos comandos de softwares cada vez mais funcionais.

O desenvolvimento da internet escreve novos e sucessivos capítulos desta evolução. Um dos mais interessantes, por sua utilidade prática e repercussão jurídica, é o que se tornou conhecido como internet das coisas (ou Internet of Things, IoT). Consiste na tecnologia que visa conectar objetos de uso cotidiano, tais como eletrodomésticos, brinquedos, automóveis, dentre outros bens — ou mesmo por intermédio de microchips aplicados em seres vivos —, permitindo a troca de dados e a utilização de sensores para monitoramento ou controle remoto. Dentre outras, utiliza-se, por exemplo, da tecnologia RFID (Radio Frequency Identification – Identificação por Rádio Frequência), cuja origem remonta ao sistema de radares da Segunda Guerra Mundial, permitindo rastrear e gerenciar produtos ou animais, bem como monitorar pessoas, sem contato direto, a partir de transponders que emitem e recebem dados, independentemente da presença humana. Da mesma forma, tecnologias como EPC (Eletronic Product Code) ou NOS (Object Naming Service) acrescentam funcionalidades à interação de objetos inanimados e a possibilidade de sua conexão à internet.

Exemplos conhecidos são o do automóvel que opera sem motorista, já em teste em muitas cidades do mundo, e cujo funcionamento pressupõe a coleta e análise de uma impressionante quantidade de informações de serviços ligados ao tráfego. Eletrodomésticos que arquivam preferências ou decisões pessoais de utilização do proprietário, como é o caso da geladeira que controla o prazo de vencimento dos produtos armazenados, ou na medida em que os produtos que armazena são consumidos, emite ordem de compra para algum supermercado próximo. Assim também o monitoramento em tempo real, e a distância, da saúde de pacientes de um determinado plano assistencial, por intermédio de microchips, ou brinquedos que permitem a comunicação entre pais e filhos independentemente da presença física. Mais a frente, inovações com a impressora 4D, ao permitir a impressão em quatro dimensões, farão com que um produto adquirido pela internet não seja enviado, senão produzido diretamente pelo consumidor. Em todos os casos, há possibilidade de controle e monitoramento, em diferentes níveis, do mundo físico a distância.

Essas inovações tecnológicas desafiam o Direito como um todo. A tradicional distinção entre as obrigações de dar, fazer e não fazer já teve sua utilidade confrontada com a complexidade dos contratos e interesses contemporâneos, e a combinação criativa, na vida negocial, entre diversos comportamentos concomitantes cujo cumprimento realiza a satisfação do interesse útil do credor. No Direito do Consumidor, definiu-se o produto e o serviço como espécies de objeto da relação de consumo. As definições legais não poderiam ser mais amplas: produto, no CDC, “é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. Serviço, de sua vez, é “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração…”. A distinção, de sua vez, deu causa a um sólido sistema de imposição de deveres de segurança e adequação, e consequentes regimes de responsabilidade do fornecedor, por fato ou vício, de produtos ou serviços (artigos 12 a 20 do CDC)[2]. O desenvolvimento da internet das coisas, contudo, desafia a revisão de entendimentos já consolidados. No tocante, a exata qualificação do fato que dá causa a deveres, e o respectivo regime de responsabilidade, se ao mesmo tempo tem-se um produto, porém por intermédio dele, ou para sua operação, haja o mesmo fornecedor ou outro que ofereça um serviço, a divisão dos regimes de responsabilidade nem sempre se faz tão clara.

Por outro lado, note-se que a internet das coisas viabiliza novas utilidades aos produtos, sobretudo pela coleta e gerenciamento de dados, muitos deles de natureza pessoal, ou mesmo dados sensíveis dos consumidores, cuja guarda e utilização deve respeitar limites essenciais da privacidade e autodeterminação informativa. Recentemente, foi notícia o vazamento de dados, incluindo conversas entre pais e filhos, pela invasão do software de brinquedos infantis, como os CloudPets[3] ou a boneca Cayla, levando inclusive, em relação a esta, à proibição de sua comercialização em alguns países[4]. Aliás, riscos sobre o uso indevido de dados pessoais dos consumidores estão longe de ser tema relacionado apenas à internet das coisas. O estudo do comportamento dos próprios usuários de internet é um ativo negocial incomparável. Iniciativas como a conhecida Cambridge Analytica prometem “um futuro onde cada indivíduo pode ter um relacionamento verdadeiramente pessoal com suas marcas favoritas e causas, mostrando às organizações não apenas onde as pessoas estão, mas o que eles realmente se importam e que impulsiona o seu comportamento”[5]. Isso a partir de modelagem de dados e perfil psicográfico que auxiliam na identificação de pessoas que possam influenciar o comportamento de outras e levá-las à ação. Prometem ajudar os clientes a construir melhores relacionamentos com seu público-alvo em todas as plataformas de mídia. Não é demais lembrar que, no Direito brasileiro, falta ainda uma legislação robusta sobre a proteção de dados pessoais, em que pese os notáveis esforços acadêmicos e institucionais de diversos estudiosos da matéria.

Esse estado de coisas resulta na própria reavaliação da extensão do dever de segurança dos produtos e serviços no mercado de consumo. A legislação brasileira é expressa ao limitar o fornecedor, indicando que coloque no mercado apenas produtos cujos riscos sejam normais e previsíveis (artigo 8º do CDC). A pergunta óbvia aqui será: todos os riscos destas novas tecnologias serão normais e previsíveis? Ou mesmo, em vista da cláusula geral de responsabilidade objetiva fundada no risco, prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, de que modo seria identificada “a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”? As implicações jurídicas da internet das coisas não param, contudo, por aí. Basta imaginar sua repercussão para o sistema de seguros e a avaliação dos riscos segurados, mesmo para permitir a definição de cobertura e de seu custo para o segurado (assim, o seguro de danos de um automóvel sem motorista, ou o seguro de vida de um segurado cujas informações de saúde sejam monitoradas em tempo real).

O modo como o Direito deverá enfrentar os desafios abertos pela internet das coisas é uma via a ser ainda percorrida, mas que exige atenção e cuidado, pois, em matéria de novas tecnologias de informação, o futuro é agora. Neste particular, há sérias dúvidas se as soluções tradicionais, a partir do Direito legislado nacional, atendem à emergência de um novo modelo negocial em rede. A ideia de um legislador global mediante instrumentos de Direito internacional clássicos ou adaptados ganha força, em especial para assegura a efetividade das soluções jurídicas que venham a ser adotadas[6]. Por outro lado, na falta desses instrumentos, é impostergável que as situações que envolvam já essas novas tecnologias devem encontrar no jurista a prudência necessária para bem aplicar o Direito posto em soluções que equilibrem o desenvolvimento tecnológico e a liberdade da ciência, com a proteção da pessoa humana em relação aos novos riscos da vida comunitária.


[1] Assim, o conhecido debate, na Itália, entre Giorgio Oppo e Natalino Irti. Assim, Natalino Irti “Scambi senza acordo”. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LII, n. 2; e Giorgio Oppo “Disumanizzazione del Contratto?” Rivista di Diritto Civile, anno LXIV, n. 5, 1998;e IRTI, Natalino. “È vero, ma…” Rivista di Diritto Civile, anno LXV, n. 1, 1999.
[2] Assim sustentamos em nosso Bruno Miragem, Curso de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: RT, 2016.
[3] http://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/vazamento-expoe-mensagens-entre-criancas-pais-em-brinquedo-inteligente-dos-eua-20993137.
[4] http://www.bbc.com/news/world-europe-39002142.
[5] https://cambridgeanalytica.org/.
[6] Rolf H. Weber; Romana Weber. Internet of Things. Legal perspectives. Berlin-Heidelberg: Springer, 2010, p. 69 e ss.

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